Partir do Erro

Proyectos Curatoriales / Curatorial Projects
10/2014 / Galeria Pilar / São Paulo, Brasil.
Artistas: Bruno Moreschi, Chico Togni, Cristina Garrido, Fábio Tremonte, Montez Magno, Pontogor, Rafael Munárriz, Ricardo Alcaide e Victor Leguy.

I/ Ponto de partida.“El hombre es el único animal que tropieza dos veces con la misma piedra.”

Com esse provérbio em mente, comecei a pensar numa primeira proposta de título para esta exposição: “A mesma pedra”. O problema era a sua adaptação a outro contexto linguístico. Não existe tradução literal ao português e, portanto, não provoca a mesma referência ao erro humano repetitivo. Ao apresentá-lo como opção aos artistas brasileiros participantes na exposição, para eles, no entanto, remetia diretamente ao poema de Carlos Drummond de Andrade “No meio do caminho”.

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

A primeira vez que foram publicados, na Revista Antropofagia em 1928, os versos foram considerados uma provocação. Além de acusar o autor de cometer falhas gramaticais, a crítica fundamental era a de que não podia ser considerado poesia. Por conseguinte, estava fora das normas do bom fazer literário, estava errado.

II/ Limites e erros.

O pecador ou o Superman:

O homem está, inexoravelmente, atado a uma falha, tanto física como existencial, que não é outra que a da própria morte. Num rápido olhar na filosofia poderíamos destacar duas tendências. A partir de Platão e a partir da moral cristã, tem se tentado enxergar para além desta condição de finitude, situando nosso plano de realidade na dimensão do incompleto – culpado, pecador, errado – só possível de transcender através da divindade. E, por isso, na vida, o sofrimento do homem está justificado por seu comportamento errôneo.Depois de Hegel, passou-se a considerar esse “erro dos deuses” como inelutável, e assim se pôde levá-lo à condição de absurdo segundo Nietzsche ou os existencialistas. Centrados nas condições próprias da vida e não de um suposto além, o que sim parece reconhecer-se no homem é uma busca da transcendência das limitações; os desejos e atos que nos levam a perseguir uma meta, seja qual for. Uma atitude que levada ao extremo supõe acreditar na possibilidade de superação de todo limite e, portanto, na negação do erro, e que revela uma concepção do ser centrada unicamente na ideia de sucesso. Se o padrão de realidade é efetivamente esse sucesso, nivela o ser a um único modelo “normalizado” e marginaliza tudo o que saia dessa concepção, já que careceria de uso social.

Não nos esqueçamos, o Superman, herói contemporâneo que junto com outros substitui a ideia de divindade em nossa sociedade, girou o mundo no sentido contrário para voltar no tempo e poder resgatar da morte a sua amada Lois Lane. Em 1992 publicou-se finalmente “A morte do Superman”, sucesso de vendas para a editora de gibis, embora, não sei se pela pressão do público ou pela da consciência órfã de deuses, tenha sido ressuscitado um ano depois.

“A questão do Gulag não deve ser formulada em termos de erro (reducionismo teórico), mas sim de realidade”[1]:

Gulag era o nome que recebia a rede de campos de trabalhos forçados na União Soviética entre 1923 e 1961, para onde normalmente eram enviados os presos políticos. Em Foucault, o Gulag era o sistema. O Gulag era também o limite do poder, como representação de aquilo e aqueles que o sistema ignora. Qualquer regime ideológico –seja neoliberal, seja socialista– constrói uma série de regras para criar uma estrutura na qual se fundamenta e na qual cria sua concepção da verdade. Uma verdade (história, leis, usos e costumes), difundida e repetida de maneira controlada por meio de um discurso de aparência científica e um aparato institucional regrado. Como indica Foucault: “Tudo isto, não é uma história, a história de um erro que tem o nome de verdade?”[2].

Um sistema político, econômico ou social, portanto, é na realidade susceptível de crítica, embora não a aceite ou faça pensar que a aceite, mas simplesmente a absorve, sendo esta crítica normalmente considerada um comportamento subversivo. Em Cuba, a partir de 1986, o governo iniciou o chamado “Processo de retificação de erros”, para atenuar os comportamentos afastados dos princípios da revolução e que refreavam sua aplicação. Pode-se supor que nem todas as falhas consideradas foram erros para todos, nem todas as correções foram bem-vindas.

A flexibilidade do cérebro:

Segundo a neurologia cognitiva, quanto mais desenvolvido o lado direito do nosso cérebro, aquele associado às tarefas contemplativas e de abstração, há no indivíduo uma maior sensibilidade da estrutura mental, maior capacidade de sincronização e de percepção a partir de diferentes pontos de vista e, consequentemente, maior capacidade criativa. Essa criatividade baseia-se na flexibilidade da massa cinzenta que permite ao cérebro detectar o lógico e o ilógico, o supostamente errôneo, e conectá-lo com a emoção.

Poderia caracterizar-se como uma atitude “errante” do cérebro, capaz de colocar-se em outro lugar, como reivindica “O mestre ignorante” de Rancière: um homem emancipado, que une inteligência e vontade para transgredir os limites impostos pela ideia de progresso – a herança da Ilustração – e que pensa que “O único erro seria aceitar as nossas opiniões como verdadeiras”[3].

Este é o tipo de cérebro do artista e do humorista. Neles o erro é parte do processo criativo que, situado entre o acaso e a decisão de mudança, permite transgredir qualquer estrutura e abrir novos campos de investigação e de concretização.

“Erre. Erre novamente. Fracasse melhor da próxima vez”, dizia Samuel Beckett.

III/ Proposta de exceções.

No curta Je vous salue Sarajevo, 1993, do diretor francês Jean-Luc Godard, Medo é a filha de Deus, responsável pela agonia mortal e repelida pela sociedade. Na realidade aqui retratada como: “A cultura é a regra. A arte é a exceção”.

Gostaria de voltar ao lugar no qual me encontrava antes do ponto de partida. Como acabei falando do erro? Esta exposição é uma pausa reflexiva dentro de um processo de investigação maior que busca responder qual seria a concepção do artista na sociedade atual. Num modelo socioeconômico no qual estamos definidos fundamentalmente pelo que fazemos, a hipótese inicial parte da análise do artista como um trabalhador a mais dentro do sistema. Este encontro de ideias (arte-trabalho) poderia ser definido como um choque quase contínuo com o pensamento normativo a partir de Duchamp, continuado na concepção de arte-vida dos anos sessenta e setenta (Cage, Kaprow ou Filliou, por exemplo), passando por Beauys, até hoje. A arte, para além de seus objetos, escapa da subordinação do tempo imposto pela máquina e do marco regulatório da profissão. Constitui-se como um elemento fora dos limites criados e, portanto, suspeito, seja como inútil ou fútil, seja como subversivo.

É esse papel de pensamento transversal dos limites a partir de uma atitude insubordinada, inquietante e agitadora, (errada?) o que quer estar presente na mostra.

Seja a partir da reflexão sobre o conceito de sistema e seus limites: o questionamento à validez da lógica cartesiana, sendo ela metáfora de imposição, no reconhecimento da existência do subjetivo e do acaso nas obras de Montes Magno; na especulação sobre a debilidade e da finitude de uma estrutura e de nosso próprio ser como sistema, de Pontogor; através da série de exercícios que repetem a ideia de estandardização normativa da sociedade que Rafa Munárriz propõe; na recriação abstrata de construções que revelam uma imprecisão incontrolável para falar do fracasso da ideia de progresso associada à estética modernista de Ricardo Alcaide; seja através da investigação que realiza Victor Leguy sobre as consequências vitais dos erros técnicos admitidos nos programas pelo “Sistema de tolerância a falhas”.

Seja a partir da ação reveladora e/ou confrontadora: a infiltração silenciosa de elementos recusados de Bruno Moreschi, neste caso, os pregos defeituosos, na própria montagem das obras; Chico Togni levando aos limites os conceitos de beleza, design layout e usabilidade; desvelando atitudes erradas do sistema de arte através da repetição de ações reprováveis, como roubar ou pintar num livro, como consta na obra de Cristina Garrido; seja na tentativa metafórica de luta e abolição de qualquer marco estabelecido na performance e cartazes de Fábio Tremonte.

IV/ Uma última pergunta.

«Em que está trabalhando?», perguntaram ao sr. K.
Ele respondeu: «Tenho muito o que fazer, preparo meu próximo erro
«.
Bertolt Brecht, Histórias do sr. Keuner, 1926-1956

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[1] M. Foucault, Verité et Pouvoir, 1978.
[2] M. Foucault, Niezstche, la Généalogie l´Histoire, 1971.
[3] Jacques Rancière, Le Maître ignorant, 1987.

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